Ia pela rua abaixo, um pé bem colocado, após o outro, não fosse cair naquela rua de paralelipípedos escorregadios, quando o telemóvel apita aquela melodia irritante, que ainda não tive pachorra de mudar. Trli trli trli…. Tou? Sim? Oi, tudo bem? Tou no bairro, onde estás tu? É pá, não sei se sei ir ter aí… anda cá buscar-me.
Uns bons copos depois….
Oi, até que enfim chegaste. Bora lá? E lá fomos nós as duas. Era noite de saída… noite de licença, noite de loucura… são raras estas noites nos dias que correm. Isto de ficar mais velho tem as suas desvantagens. As obrigações não permitem tantas noitadas, o corpo já não permite tantas noitadas. Mas nada de queixas… hoje, a noite é minha.
Olá! Olá! Chegámos enfim. Ena, tanta gente. Beijinhos práqui, beijinhos práli. Estávamos num espaço engraçado. Era uma casa com uma frente avançada e emportada, é como se tivessem roubado um espaço de rua para dentro de casa, pois a calçada mantinha-se, os bancos de pedra encostados à parede com azuleijos brancos por cima, mas com tecto de zinco. Ou seja, uma típica casa de férias algarvia, em pleno alentejo, mas com entrada desenrascada, à emigrante. Bebíamos copos dentro dessa entrada, e cá fora na rua, não havia mais casas por perto. O céu estava estrelado, não que alguém reparasse nisso, estávamos todos ocupados à conversa. Talvez para alguns o céu fosse conversa, não sei, não tenho a capacidade de ouvir o que todos dizem. Se bem que gosto de me meter nas conversas, gosto de conversar. Ou melhor, neste estado, gosto mesmo é de monologar, não estou muito interessada acerca do que os outros dizem, é mais o que eu tenho para dizer é que interessa. Já lá vão uns bons copos.
A música toca, mas não sei definir muito bem o que é. Sei que tem uma batida que me põe a dançar. Gosto de dançar. Fecho os olhos e deixo-me levar pelo ritmo da música. Abano as ancas, os ombros em sentido contrário, as pernas meias dobradas, os pés não precisam mexer muito, só uns passinhos para aqui e para ali para ver se não caio. A cabeça vai abanando lentamente para os lados, um sorriso estampado na boca. Adoro dançar. A bebida acaba, é hora de ir encher o copo. Converso mais um bocadinho. Tento manter conversas intelectuais, é uma mania que tenho quando estou com os copos, claro que não consigo. As pessoas que ainda estão sóbrias deixam de ter paciência para mim. Refugio-me nos enfrascados. Mas esses também só querem que os oiçam, não lhes apetece ouvir. Olho o relógio, é tão cedo, e eu já neste estado. Vou-me sentar.
Abro os olhos. Quase não consigo, tanto me dói a cabeça. Estou dentro de casa, deitada no sofá, vestida. “Pronto, apaguei”, penso eu. E agora? Que fiz eu durante a noite. Assola-me a angústia de não saber o que andei a fazer a noite anterior. O Emanuel já está acordado, não bebe — não ressaca. Dá-me um bom dia um bocado mal disposto, penso logo que é porque o chateei em excesso na noite anterior. Não levanto ondas, vai ser o pior dia do ano. Angústia. De cabeça baixa, porque não aguento as dores e porque não quero encarar ninguém, procuro a minha mala. O Emanuel, na cozinha, pergunta-me o que procuro eu, ainda com aquela voz de mal disposto. Respondo-lhe. Retalia-me com um ontem à noite não a quiseste trazer para dentro. O meu coração bate forte… será que foi isto? Discutimos porque eu não quis trazer a mala para dentro e agora ele não me pode ver à frente? Com o coração ainda a bater forte, nem o encaro e dirijo-me para a porta, para ir lá fora buscar a minha mala. Lá está ela, em cima do banco de pedra com azuleijos brancos por cima. Pego nela, está estranhamente leve. Abro o fecho da frente e não está lá nada, falta o ben-u-ron que tanto precisava, as chaves do carro, as chaves de casa, o baton, o telemóvel, o meu coração não vai aguentar. Abro o fecho grande e está lá tudo, mas muito magro. Agarro na carteira, está vazia, os cartões, os cheques, as notas, as moedas, as facturas que lá tinha, as notas de multibanco. Entro em pânico, fui assaltada. Não consigo fazer grande alarido, pois as minhas dores de cabeça não o permitem. Os olhos derramam lágrimas que rolam pela cara abaixo, mas também me fazem doer a cabeça. Lembro-me da última vez. Aconteceu-me o mesmo. Não aprendo. Aqui no mesmo local. Porque bebo tanto? Entro em casa e resolvo encarar o Emanuel e dizer-lhe que fomos assaltados. Ele responde-me que era bem feita, eu já devia saber disso. Bebo um café que já está na bancada da cozinha à minha espera. Dá-me a volta ao estômago. Tenho de ir para casa. Como saio daqui?
Não espero resposta. Saio de casa e ponho-me a andar, decidida a ir à polícia fazer queixa. Tenho umas moedinhas no bolso das calças, deve dar para o autocarro. Começo a andar, de olhos atentos, tenho de encontrar uma paragem de autocarro. Dói-me a cabeça. Vou numa estrada, de alcatrão, mas que está cheia de terra, das margens abandonadas. Mais ao longe, à minha esquerda, está um conjunto de prédios, altos amarelos, velhos, degradados. Às suas portas estão pessoas em pé, pessoas sentadas em banquinhos. Ninguém faz nada, até os cães dormem. Algumas olham-me. Começo a ficar incomodada. Mais à frente, vislumbro mais prédios. Já não estou no alentejo, definitivamente. Mas no primeiro prédio, à direita, há um cafezinho. Sinto-me aliviada, alguém a quem fazer perguntas.
Entro, logo olham todos para mim. O café tem mesas redondas com tampo a imitar madeira escura, rebordados de alumínio e quatro patas de metal. As cadeiras são idênticas, mas vê-se o aglomerado de que são feitas. O chão é de ladrilhos brancos, com manchas pretas e de outras cores, para disfarçar o sujo. Deve haver umas 10 mesas, cada uma tem 4 cadeiras à sua volta. Estão ocupadas 2 ou 3 mesas, vêm-se cartas de jogar, copos de 3, garrafas de vinho e cinzeiros cheios. O café está ocupado só com homens, ali mesmo ao lado da entrada está um com um bigode farfalhudo, barba por fazer, grandes sobrancelhas e olhos pernetantes. Tem uma camisola de alças branca, que deixa observar um a um os pelos que lhe cobrem ombros, costas, peito, sovacos. Cigarrinho no canto da boca, com a cinza do cigarro inteiro, quase a cair para cima das calças de fazenda castanhas escuras. Cartas na mão. Tem um bom jogo.
O empregado, ou dono do café, sai de trás do balcão, a secar as mãos a um pano, escurecido pelos anos de uso, mau uso. Abre-me um sorriso, com falta de vários dentes. Olá menina, posso ser-lhe útil? Voz bastante afável. Deve ser raro ver-se mulheres por ali. Pergunto pela polícia, onde ficava a esquadra da polícia. Logo o sorriso do homem se desvanesceu. Ouvem-se cadeiras a arrastar. Olho. Ninguém olha para mim, aliás escondem a cara para que eu não as veja. Rapidamente obtenho a minha resposta. A paragem do autocarro é ali. Com a mão, suja, mas seca, o homem empurra-me suavemente o cotovelo, em direcção à saída.
Fico contente de sair dali. Só quero ir para a paragem do autocarro. Vem aí um, corro. Obrigada, quanto é o bilhete?
19Fevereiro2008
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