Friday, July 4, 2008

Eu e a minha praia

17.30. A hora certa. Que preguiça. Espreguiço-me demoradamente, saboreando cada bocadinho de corpo a esticar-se, os braços parece que tocam no tecto, a coluna arqueia-se e o rabo quase que cai do sofá. De repente estico as pernas com os braços junto a elas, estico, estico, estico e um tremor percorre-me o corpo da cabeça aos pés. 
É o momento para dar um salto do sofá para o chão deliciosamente frio. Está um calor entontecedor. Se não saio do sofá fico aqui o resto do dia. Dirijo-me para a kitchenet, a cafeteira ainda tem um pouco de café, nem me dou ao trabalho de aquecê-lo, já me chega o calor de todo o ar que me rodeia. Pego numa toalha que ponho sobre o meu ombro direito, calço os chinelos, procuro a chave de casa. Antes de sair dou uma espreitadela pela janela para confirmar a minha ideia. Sim, mares de pessoas saiem daquela que vai ser a minha praia. 
Devagar, porque o calor que ainda se sente não me deixa ser mais célere, saio de casa, levando na mão o livro que estava na mesa da entrada e a toalha pendurada no ombro. Desço as escadas e atravesso a estrada tentando desviar-me da multidão que teima em achar que a melhor hora da praia já acabou. 
Percorro uns metros na areia, procuro o lugar mais abrigado de gente, incomodam-me as pessoas na praia. Estendo a minha toalha, pouso o livro por cima e lentamente dirijo-me para o mar. Está calmo, com ondas regulares, daquelas onde se apanha boleia, mas que felizmente os surfistas não gostam. Atiro-me de cabeça para as ondas, nado, nado, mergulho, apanho boleia, o mar está fresco, fantástico. Não está frio, o mar frio faz doer os ossos, este está fresco, só arrefece a pele, é leve, sinto-me a flutuar. As bolhinhas da espuma das ondas desfazem-se na minha cara. Deito-me na água de braços abertos, fecho os olhos, os ouvidos dentro do mar ouvem o restolhar das ondas. Deixo-me estar assim quase até adormecer.
Levanto-me, e fujo da água, como se ela brincasse comigo e não me quisesse deixar ir.
Deito-me na toalha, descanso os músculos 5 minutos. Pego no livro e esqueço-me do mundo. Só quando já não consigo ler, por falta de luz, me lembro de onde estou, fecho o livro e oiço mais uma vez as ondas a reclamarem atenção, aquela que não lha dei durante estas últimas horas. Pego na toalha, peduro-a no ombro, agarro no livro e calço os chinelos. Foi um dia de praia perfeito.

4Julho2008

Thursday, July 3, 2008

ser-se negativo

era.
não era.
podia ter sido.
não foi.

3Julho2008

Friday, May 9, 2008

Uma semana só

A notícia chegou um dia. A má notícia.
Mariana, vinha da escola para casa quando viu o João encostado à parede dum prédio a fumar um cigarro. Estava absorto do mundo. Estava branco, tremia que nem varas verdes. O cigarro não estava parado nem um segundo, tal era a tremideira dos seus dedos. A mão esquerda estava aconchegada entre o antebraço direito e o peito.
Mariana franziu o sobrolho ao ver aquela imagem. Não augurava nada de bom. Aproximou-se do marido que nem se apercebeu que ela ali estava. Francamente preocupada, Mariana estava mesmo em frente, cara a cara com o marido e este teimava em não a ver. Pousou a mão no seu ombro e João finalmente sai do seu estado de transe e realiza quem está à sua frente. Olha para o amor da sua vida e num repente agarra-se a ela soluçando incontrolavelmente toda a amargura que lhe estava na alma.
Mariana ficou desorientada. Se alguma vez na vida ficou sem saber o que fazer, foi nesta ocasião. Tudo lhe passou pela cabeça, enquanto aguentava os soluços do seu marido de encontro ao seu ombro. Perdera o emprego? tinha-a enganado e estava arrependido? Mariana não sabia o que pensar e tentava preparar-se mentalmente para o pior.
Com algum esforço consegue afastá-lo, o suficiente para olhar para a sua cara. Pergunta-lhe “o que se passa?”
João olha para ela, tenta acalmar-se, atira fora a beata do cigarro que tinha estado a queimar nos seus dedos, leva a mão ao bolso de trás das calças e tira de lá um envelope que entrega à sua mulher, mas não espera que Mariana o abra e diz-lhe à velocidade duma bala: tenho uma semana de vida, é o que dizem estas análises.
Mariana olha para o João, tenta vê-lo, mas uma névoa cobre-lhe a vista. Sente as pernas a tremerem e a ficarem sem forças para a suster. Sente o chão a bater na sua cabeça, mais nada.
João não reage. Deixa-se cair ao lado da mulher e ali ficam os dois perdidos na vida, deitados no chão duma rua onde ninguém os conhece.

17Março2008

Tuesday, April 29, 2008

Semana sem compras II

Andava farto da minha vidinha de ditador bonzinho. Todos gostavam de mim e tal. Então, para me divertir um pouco, resolvi instaurar uma semana sem compras. Seria absolutamente proibido gastar dinheiro. Agora queria ver como as pessoas se iam safar.

Thursday, April 17, 2008

Semana sem compras

No ano de 2020, vivendo durante a ditadura de Jó Só Crates, "Sua Exa." para se divertir resolveu declarar a semana 10 do ano, a "Semana sem compras". Ao início ninguém percebeu muito bem o que era aquilo da "Semana sem compras", mas os jornais, ávidos de informação não sensurada trataram de nos explicar bem do que se tratava. Dizia a notícia assim:

"Sua Excelência, o Dr. Jó Só Crates, nosso merecidíssimo 1º ministro, por qualidade e sabedoria, teve o maior gosto em declarar que, para todo o sempre, a semana 10 de todos e cada ano, vai ser uma semana sem compras. Esta decisão foi tomada para salientar a sua política, muito acertada, devemos dizer, contra o consumismo absurdo e desenfreado que se viveu durante os anos de capitalismo neste país.
Nessa semana, toda e qualquer pessoa, à excepção, claro, de sua excelência e seus acessores, estará proibida de realizar qualquer tipo de compra. Com "qualquer tipo de compra" o nosso Primeiro quer dizer:
• Mini-mercados, Supermercados, Hipermercados e Mercados
• Tabacarias
• Transportes Públicos
• Jornais
• Serviços de qualquer género
• Outros
Aconselha-se as pessoas, portanto, a mentalizarem-se da certeza de uma semana por ano cheia de alegria e leveza nos seus trabalhos. Não se esqueçam de levar almoço de casa, pois os restaurantes e cantinas estarão fechados. Relativamente a qualquer outra falta, vão ter de ter paciência e esperar penitente e alegremente pela semana seguinte."

Após esta notícia, os portugueses em peso foram aos supermercados abastecer-se de todas as provisões que conseguissem guardar em casa. Essa deveria ter sido chamada a semana sem trabalho. Nunca houve tantas desculpas para não trabalhar, quando se sabia exactamente o que as pessoas iriam fazer. Todos os estabelecimentos comerciais exibiam filas gigantes, até pareciam concorrer à maior fila de Portugal. As gasolineiras eram quem provocava maiores filas, ninguém queria ficar sem combustível durante uma semana. Esta foi uma semana bem mais complicada que a "Semana sem compras". Esta última, acabou por ser bem calma, na qual se ia à conversa e a pé para o trabalho. Pessoas que trabalhavam longe, praticamente iam picar o ponto, viam os emails e voltavam para casa. Viam-se bicicletas e motas em todas as ruas, todos procuraram bicicletas em suas casas, era mais rápido e menos cansativo que ir a pé. Os carros só apareceram no primeiro dia. Foi o primeiro dia aquele que maior absentismo teve, houve pessoas a chegar ao trabalho à hora de saída. O que nos valeu foi a boa disposição a que todos aderiram. Não havia pressas para o trabalho, nem estresses, nada. Felizmente, os patrões não penalizaram ninguém.

Quem se arrependeu largamente por ter tomado esta medida, foi o nosso Primeiro. As semanas seguintes foram para contabilizar o erro da semana anterior. Nunca a economia portuguesa esteve tão abalada como nos meses seguintes àquela "Semana sem compras". E assim, pela primeira vez, servimos de cobaias, porque muitas outras se seguiram, mas essas ficam para uma próxima história.

Thursday, April 10, 2008

A notícia apareceu de rajada na televisão ontem, a meio do filme que estava a ver. Eram 22.30. Começou o genérico dos noticiários especiais, apareceu a apresentadora, sem estar penteada, com um ar um pouco afogueado. Achei estranho, fez-me lembrar o início da Guerra do Golfo com o José Rodrigues dos Santos e aquele ar aflito de sobrancelha carregada. Neste noticiário o acontecimento relatado era o Estado de Sítio em que íamos entrar. Até ordens em contrário, não seriam permitidas quaisquer atitudes libertárias, seriam proibidos os ajuntamentos de mais de duas pessoas e ainda assim, estas teriam de ser familiares. Uma das restrições que impunham aos cidadãos, eram as compras. Seria absoutamente obrigatório entregar todo o dinheiro de que dispunhamos. Nesse sentido, teríamos todos de ficar em casa até alguma autoridade devidamente identificada aparecer para fazer a recolha dos valores monetários que existissem em casa. Desencorajavam grandemente qualquer atitude desrespeitadora deste pedido, essa resultaria na execução imediata de todos os seres vivos nessa casa. Após a entrega do dinheiro, e de manhã, deveriamos ir trabalhar, onde nos seriam dadas mais instruções.

continua

Monday, March 31, 2008

Um conto do passado (com pronúncia)

Ora oiçam(e)..
Ioje, boue falare acerca de nosse portuguale ne ane de 2108. E porcuê nuessa data em especiôle? Porcue fuoi um ane muite importuante relativamainte à poluítica do nuosso paíge.
Fuoi nessi’ane que deixuámes es trainta partides poluítiques, já conhuma tradiçõ(e) de 100 anes, e passuámes ao(e) deple partiduarisme, aquele pele quale nes regemes huoje.
Todes es partuides à escuerda se juntaran neum suó e todes es partuides à direita se juntaran, também, neum suó.
Foi um pouque complicuada esta transiçõ(e) impuosta pela Uniõ(e) Europêa a todes es países da Euruopa des 36. Ainda longe da Euruopa des 45 de huoje e talvez des 49 de ane que vem, se a entrada des países de Transnítria, Abecácia, Seboga e Ossétia do Sul acontecere.

Mas voltuande a 2108. Na altüra haviam 9 partides mais ou menes à escuerda e 8 partides mais ou menes à direita, es restantes 13 tiveran de escolhuer de que lade queriam ficuar. Conseguire que todes es líderes se juntassem e concordassem com um cabecilha por partuido, o Partuido da Escuerda Trabalhadora (PET) e o Partuido da Direita Trabalhaduora (PDT), foi muite complicade. Cheguou a assistir-se a pecuenas guerras de guerrilha. A PE – Poluícia Europueia teve de mandare reforces para portuguale para conseguire controluare es ânimes elevades que huouve. O nuosse Parlamuente tueve muitas alteraçõs. Passuou a viguorare o Sufrágie Unuiversale Europueu, aoe qual huouve fuortes contestaçõs. Ou sueja, quem quer que se inscrevuesse come eleitore universuale puoderia votuar em qualcuer paige da Euruopa, significande que portuguale iria ter es eleitores estrangeires que quisessen participuare activamuente na escuolha des nosses governantes. Tende só 2 partides, isse iria alterar muita coisa. Hoje sabemes que foi, sem dúvida alguma, a melhor opçõ(e).

Fuoi, portante, nesti´ano de 2108 que a Assembloia da Repüblica, que se localuiza na suidade de Lisbuoa, se transformuou nas ruínas que hoje vemes, através duma buomba posta. Por quem, nunca se descobrie.

E assim, mês cares amigues, espere ter contribuíde para o aumainte da vossa sabedoroia. Despece-me até à próximua.

Como a Carla ficou desempregada

Sexta-feira, 29 de Fevereiro de 2008.
Carla, levantou-se ensonada. Já era 6ª feira, que bom. Melhor ainda porque ia de ferias. As merecidas férias, depois de 6 meses de inferno naquela malfadada empresa.
Chegou cedinho porque tinha de despachar o trabalho, não queria ir de férias com trabalho por acabar.
Estava bem disposta, nas férias ia pensar bem acerca da sua vida. Os prós e os contras das decisões que tinha tomado nos últimos tempos. As últimas semanas das férias já estavam reservadas para não pensar em nada, a não ser na praia que ia ter à frente.
Ultimamente, os problemas no trabalho tinham diminuído, ela tinha decidido não ser tão reivindicativa. O que andava a correr mal acabaria por melhorar. Os colegas, no entanto, neste dia estavam estranhos. As 6ªs feiras normalmente são tão descontraídas. Há mais trabalho que o costume, mas com o fim de semana à porta, todos se animam.
Ao almoço, Carla foi tratar dos últimos pormenores para a viagem que aí vinha. Foi buscar o bilhete de avião à agência de viagens. Aproveitou para comprar um protector solar, o sol do equador é bem mais forte. Não demorou muito, não podia abusar na hora do almoço, senão teria um e-mail à sua espera quando chegasse a avisar que os horários de entrada eram para cumprir.
A tarde passou-se estranha mas célere já que ninguém falava com ela.
6.20 toca o telefone. Era o Patrão. Que será que ele queria? Estava quase na hora de se ir embora, será que nem no último dia antes de ir de férias a deixavam em paz? — pensava Carla enquanto se levantava para ir ter à sala dele.
Entrou na sala, ele disse-lhe para não fechar a porta e para se sentar. Estranho.
- Carla, começou o Patrão, deves estar a imaginar o que te vou falar.
Carla fez uma cara inquisidora. Dando a entender que não percebia onde ele queria chegar.
- Bom, como sabes, o nosso relacionamento desde que cá chegaste há 6 meses atrás, não tem sido o melhor.
Oh meu Deus, pensou Carla, será que ele não podia deixar esta conversa para depois das férias, preciso sair, ainda tenho coisas a tratar.
Mas Carla não foi capaz de dizer isto ao patrão. Ficou à espera do que ele tinha para dizer. Se demorasse muito então ela dizia-lhe qualquer coisa.
O Patrão continuou.
- Isto que eu te vou dizer custa-me muito. São decisões muito difíceis que quem está na minha posição tem de tomar, de vez em quando. É por isso que…
Nesta altura, o coração de Carla começou a bater muito forte no seu peito. Começou a tremer. Tentou não dar a entender que estava nervosa. O que era difícil, pois a sua respiração começou a ficar mais acelerada.
- Carla, vou dispensar-te do trabalho nesta empresa. Como o teu tempo de experiência acaba hoje, mais precisamente agora, não precisas voltar. Boas férias,— um sorriso cínico escapou-lhe da boca.
À Carla só lhe saiu um “obrigada” — a coisa que ela menos estava naquele momento, agradecida. A tremer, vira as costas ao ex-Patrão.
Nem direito ao subsídio de desemprego ia ter.

1Março2008

Tuesday, March 25, 2008

O primeiro dia

João, havia recebido a notícia há aproximadamente 7 meses. Na altura tinha ficado muito apreensivo e angustiado. Desde então a sua vida pouco tinha mudado. Foi uma promessa que João fez a si próprio. O dia a dia mantinha-se. De casa para o trabalho e do trabalho para casa.
A única alteração era a ida mensal ao médico, onde ia saber se estava tudo bem e se a evolução estava a ser a melhor para aquela situação. O dia que antecedia a ida à consulta era sempre o mais angustiante do mês. Será que iria haver uma notícia desagradável nessa consulta? Será que teria mais um mês de descanso?
A verdade é que, tudo tinha corrido sempre bem. Sempre que saía do consultório da médica, o seu alívio era notório e a sua face estava descontraída.
Mas hoje, sete meses depois da notícia, e por ser tão repentino, João está muito nervoso, extremamente nervoso, aliás. Algo dentro de si diz-lhe para estar alerta, vai acontecer alguma coisa de errado neste dia.
João encosta-se à parede exterior do hospital e fuma o 10º cigarro do dia. Treme de medo, ansiedade, nervos.
Absorto nos seus pensamentos, quase nem viu chegar a médica de bata branca. Mal se apercebe da sua presença o seu coração salta, estala dentro do seu peito.
Mas a médica vem com um sorriso nos lábios, e diz-lhe:
- Parabéns João, acabou de ser pai dum belo rapaz de 4 kg. Filho e mãe estão bem, se quiser pode ir vê-los.
Afinal tinha corrido tudo bem. Não havia razão para estar tão nervoso. Mas e agora? O que iria fazer? Seria este, como dizem, o dia mais feliz da sua vida? João entra, pela primeira vez no hospital, como pai. Vai conhecer o seu filho. Repentinamente, uma sensação de felicidade invade-lhe o peito. Respira fundo. Com um sorriso aberto entra no quarto. É, sem dúvida alguma, este, o dia mais feliz da sua vida.

A Terra come-nos as entranhas (escrita automática)

Ressurreição como oposto à morte e como oposto à vida. Qualquer coisa que poderá surgir do nada. Tudo se transforma, talvez a morte também, e porque não? 10 minutos é muito tempo. Para escrever é claro, para a ressurreição será muito talvez uns milésimos de segundos cheguem. Para a morte será porventura demais. Quanto mais rápido melhor. Pelo menos para quem a sofre. Sofre? Dói? Se for rápido talvez não doa. Mórbido, morbidez. 6 minutos. É difícil falar, escrever sem muito pensar sobre este tema. Não acredito na ressurreição, acredito na morte e que todos lá chegaremos um dia. Depois é o nada. O científico. A terra come-nos as entranhas, ou os bichos que lá vivem. Se formos queimados, ficamos em cinzas que se desfazem no ar e na terra para onde elas forem despejadas. A alma fica-se pela memória de quem cá fica. É a esses que dói. Dói que se farta. 8 minutos. Nascer, viver, morrer. Calha a todos. 10 minutos, ou quase. Nem olho para trás.

Thursday, March 13, 2008

Estado de Portugal, Março de 2108

"O meu TRAQUIGÁS (transformador químico de gás metano), mais conhecido entre amigos por “TRAQ”, avariou-se. Que chatice. Vou passar o dia cheio de cólicas. Sem o TRAQ, o sistema de aquecimento/arrefecimento dos fatos que vestimos não funciona, portanto vou passar frio. Pior, vou passar o dia a ver o olhar compadecido dos outros. Vou ter que ir a pé, porque não é permitido andar de transportes públicos sem o TRAQ. Tenho de mandar arranjá-lo urgentemente. Esperam-me dias difíceis até que o TRAQ esteja arranjado. Sem ele, o cheiro que exalamos com os nossos gazes, é tão nauseabundo que, em grandes concentrações, mata por intoxicação. É desta alimentação que fazemos. Devíamos voltar a lavrar a terra, em vez de consumirmos alimentos reciclados.

Estamos em Março, pleno inverno e ainda faltam 9 meses para a primavera. Não sei porque a UEE, a União dos Estados Europeus achou melhor termos uma estação por ano. Mas ainda bem que hoje não chove, pois não vou ter remédio, senão ir a pé para o trabalho. Tenho de ir trabalhar, como todos os comuns mortais e imortais. Aliás, se quiser adquirir o estatuto de imortal vou ter mesmo de trabalhar bastante, pois só os mais produtivos conseguem essa regalia. Por falar nisso, eu devia trabalhar este fim-de-semana que vem. Se há coisa que não entendo é esta insistência em manter os comboios em funcionamento, com tanta tecnologia que há hoje em dia... Ok, ok, eu sei. Foi o embargo da UEE à tecnologia de ponta no Estado de Portugal, por nos termos recusado, anos a fio, a respeitar as regras relativas à energia verde, imposta pela Comissão do Estados Europeus. Bom, o que sei, é que vou perder um fim-de-semana importante para a promoção a imortal. Se tivéssemos a Tecnologia de Transportes Imediatos que há no nosso Estado vizinho de Francospania, perdia só umas horas.

O que me consola, é que quando chegar à ilha da Pérola-Madeira vou refugiar-me na Realidade Virtual do “Campo no litoral”. Aquilo é que é bom, ouvir o chilrear dos passarinhos, sentir o vento com cheiro a maresia na cara, ver as ondas revoltas a chocarem contra as rochas. Ainda bem que as várias Realidades Virtuais não estão espalhadas, temos de nos deslocar para conhecermos as realidades locais. É uma maneira de não perdermos a identidade do nosso Estado de Portugal, o antigo “país à beira mar plantado”. Sim, ainda temos mar, bastante até. Quando chega o verão, como dura um ano inteiro, o nível do mar sobe até a antiga cidade de Viseu. Portanto, quem conheça o Estado consegue perceber que quase metade dele fica debaixo de água. O que nos salva são as cúpulas citadinas. A nossa capital Estatal passou da antiga Lisboa para Portuguarda, a cidade anteriormente chamada de Guarda. Não podíamos ter uma capital isolada pelo mar e sem comunicações viárias de 4 em 4 anos.

Bem, acabou-se o tempo para pensar. Cheguei ao trabalho."

Esta foi uma das gravações de memória encontradas nas escavações arqueológicas no fundo do Oceano Maior. Estas escavações estão a ajudar-nos a encontrar informação perdida há milhares de anos e a perceber o que aconteceu ao nosso planeta nos últimos milénios. O que sabemos é que na chamada Era do Grande Degelo, quando a última grande calota do Pólo Sul derreteu, o nosso planeta ficou reduzido a pequenos espaços terrestres. Tudo o resto ficou água salgada.

continua

Thursday, January 31, 2008

O Quarto Escuro

Fecho o olhos. Não vale a pena tê-los abertos. Não se vê nada. Usar os outros sentidos é, a partir de agora a única solução. Não é só para mim esta questão dos sentidos, todos nós temos de usá-los agora. Deixo-me ficar bem quieta para ninguém me ouvir.

Oiço um “Aha, estás aí!!” a ecoar pelo quarto. Arrepio-me. Já encontraram mais um. Daqui a pouco não sobra ninguém. Aguardo ansiosa para que não chegue a minha vez. Deixo-me estar muito quieta. Tento aperceber-me de como conseguirei sair dali, se necessitar.

Oiço passos a aproximarem-se. O chão range, parece que estou num filme de terror.

Felizmente não me encontraram. Os passos afastam-se novamente. Aquele soalho de madeira antiga faz com que seja mais fácil ouvirmos o que nos rodeia. Para mim não é bom que isso aconteça, se quiser fugir ouvem-me certamente.

Correria. Gritos. Mais alguém que foi apanhado. O meu coração bate depressa, sinto-o na pele, todas as veias do meu corpo pulsam forte.

Acho que não estou bem escondida, esta mesa é muito alta, o sofá, onde está encostada cheira-me a pó, daqui a pouco começo a tossir e desmascaro-me. A cadeira aperta-me as pernas e as costelas já me doem por estarem de encontro à quina duma perna da mesa.

- Não!!!!!! – oiço gritarem. Estou a ficar petrificada. Se mexo um dedinho de certeza que me encontram.

O sofá, do meu lado direito, de cada vez que se senta alguém que já foi encontrado, solta uma nuvem de pó, que ninguém vê, mas que eu sinto e muito.

Não aguento, sai-me convulsivamente do peito e subindo pela garganta e nariz a tosse e um espirro que tento encobrir com a mão. Quem está em cima do sofá ouve-me. Tentam encobrir-me, começam todos a tossir. Desta feita escapei.

Acho que ainda faltam alguns serem encontrados, estamos perdidos. Estamos a ser encontrados muito depressa.

Perdida no meio dos meus pensamentos, sinto uns sapatos mesmo ao meu lado. Fico o mais quieta que consigo. Mas uma mão, toca-me nas costas, pelo lado da mesa, onde nada me protege. Solto um grito. Encontraram-me.

Acendem a luz. Todos os meus amigos encontram-se sentados no sofá. Fui a última a ser encontrada. Afinal parece que estava bem escondida.

Adoro jogar ao quarto escuro.

Monday, January 28, 2008

O Quarto

Acordei. Abri os olhos. Pisquei-os. Pisquei-os mais uma vez. Não vejo nada. Estou cega.

Entro em pânico e começo a apalpar tudo o que me rodeia. Por baixo de mim está um colchão muito fino. Parece feito de palha. Está forrado com um tecido fino que deixa sentir o interior. Apercebo-me que não estou no meu quarto. Sinto o coração a bater no peito, forte como as badalados dum sino da igreja mesmo ao meu lado, toda eu estremeço. A única coisa que oiço é o meu coração.

Acalmo-me, ou tento acalmar-me e raciocinar. A minha mão, agora, percorre o colchão até a berma. Sinto, por baixo do colchão, um frio liso. Retiro logo a mão, como se algo me tivesse picado, tal foi o medo. Estou num colchão de palha, que está colocado no chão de cimento.

A minha vista já se habituou ao escuro. Vejo junto ao chão um risco branco pálido, como uma nesga de luz. Deve ser uma porta.

Encho-me de coragem. Ponho uma mão no chão, ao lado do colchão. A outra mão segue a primeira. De joelhos no chão, vou de gatas, tacteando até junto, do que deve ser, a porta.

Como vim aqui parar?

Chego perto da luz, e deixo de vê-la. Mas consigo aperceber-me que estou junto a uma porta de madeira, ornamentada e pesada. Procuro uma maçaneta, não encontro. Tenho medo de me levantar, não sei a altura do tecto, não sei o que existe por cima da minha cabeça. Não sei se estou sozinha naquele quarto. Bato na porta. Primeiro devagarinho. Como ninguém responde bato com todas as forças que tenho, mãos fechadas, mãos abertas, com os nós dos dedos. Nada.

Sento-me no chão e encosto-me à porta. Penso. Como vim aqui parar. Mais calma tento raciocinar e lembrar-me dos últimos momentos em que estive acordada. Só me lembro de me deitar. Vesti o pijama, lavei os dentes, deitei-me, agarrei no livro que tenho em cima da minha mesa de cabeceira e li-o. Não me lembro de mais nada.

De repente tenho um sobressalto. O meu coração volta a bater muito muito forte. Quase nem consigo perceber o que estou a pensar. Aquilo que acabei de me aperceber.

Estou dentro do livro de terror que lia ontem na cama. É em tudo idêntico. Um quarto escuro, fechado, sem janelas, um colchão no chão de cimento frio e liso. Como saio daqui? Pensa, pensa, o que fez a personagem? Não me lembro, adormeci.

Maria, vais chegar atrasada à escola — oiço uma voz. Hoje tens teste de Literatura, não queres faltar, pois não?

Abri os olhos. Luz. Sol. Vida. Era um sonho.

Thursday, January 24, 2008

O Assalto

Ia pela rua abaixo, um pé bem colocado, após o outro, não fosse cair naquela rua de paralelipípedos escorregadios, quando o telemóvel apita aquela melodia irritante, que ainda não tive pachorra de mudar. Trli trli trli…. Tou? Sim? Oi, tudo bem? Tou no bairro, onde estás tu? É pá, não sei se sei ir ter aí… anda cá buscar-me.

Uns bons copos depois….

Oi, até que enfim chegaste. Bora lá? E lá fomos nós as duas. Era noite de saída… noite de licença, noite de loucura… são raras estas noites nos dias que correm. Isto de ficar mais velho tem as suas desvantagens. As obrigações não permitem tantas noitadas, o corpo já não permite tantas noitadas. Mas nada de queixas… hoje, a noite é minha.

Olá! Olá! Chegámos enfim. Ena, tanta gente. Beijinhos práqui, beijinhos práli. Estávamos num espaço engraçado. Era uma casa com uma frente avançada e emportada, é como se tivessem roubado um espaço de rua para dentro de casa, pois a calçada mantinha-se, os bancos de pedra encostados à parede com azuleijos brancos por cima, mas com tecto de zinco. Ou seja, uma típica casa de férias algarvia, em pleno alentejo, mas com entrada desenrascada, à emigrante. Bebíamos copos dentro dessa entrada, e cá fora na rua, não havia mais casas por perto. O céu estava estrelado, não que alguém reparasse nisso, estávamos todos ocupados à conversa. Talvez para alguns o céu fosse conversa, não sei, não tenho a capacidade de ouvir o que todos dizem. Se bem que gosto de me meter nas conversas, gosto de conversar. Ou melhor, neste estado, gosto mesmo é de monologar, não estou muito interessada acerca do que os outros dizem, é mais o que eu tenho para dizer é que interessa. Já lá vão uns bons copos.

A música toca, mas não sei definir muito bem o que é. Sei que tem uma batida que me põe a dançar. Gosto de dançar. Fecho os olhos e deixo-me levar pelo ritmo da música. Abano as ancas, os ombros em sentido contrário, as pernas meias dobradas, os pés não precisam mexer muito, só uns passinhos para aqui e para ali para ver se não caio. A cabeça vai abanando lentamente para os lados, um sorriso estampado na boca. Adoro dançar. A bebida acaba, é hora de ir encher o copo. Converso mais um bocadinho. Tento manter conversas intelectuais, é uma mania que tenho quando estou com os copos, claro que não consigo. As pessoas que ainda estão sóbrias deixam de ter paciência para mim. Refugio-me nos enfrascados. Mas esses também só querem que os oiçam, não lhes apetece ouvir. Olho o relógio, é tão cedo, e eu já neste estado. Vou-me sentar.

Abro os olhos. Quase não consigo, tanto me dói a cabeça. Estou dentro de casa, deitada no sofá, vestida. “Pronto, apaguei”, penso eu. E agora? Que fiz eu durante a noite. Assola-me a angústia de não saber o que andei a fazer a noite anterior. O Emanuel já está acordado, não bebe — não ressaca. Dá-me um bom dia um bocado mal disposto, penso logo que é porque o chateei em excesso na noite anterior. Não levanto ondas, vai ser o pior dia do ano. Angústia. De cabeça baixa, porque não aguento as dores e porque não quero encarar ninguém, procuro a minha mala. O Emanuel, na cozinha, pergunta-me o que procuro eu, ainda com aquela voz de mal disposto. Respondo-lhe. Retalia-me com um ontem à noite não a quiseste trazer para dentro. O meu coração bate forte… será que foi isto? Discutimos porque eu não quis trazer a mala para dentro e agora ele não me pode ver à frente? Com o coração ainda a bater forte, nem o encaro e dirijo-me para a porta, para ir lá fora buscar a minha mala. Lá está ela, em cima do banco de pedra com azuleijos brancos por cima. Pego nela, está estranhamente leve. Abro o fecho da frente e não está lá nada, falta o ben-u-ron que tanto precisava, as chaves do carro, as chaves de casa, o baton, o telemóvel, o meu coração não vai aguentar. Abro o fecho grande e está lá tudo, mas muito magro. Agarro na carteira, está vazia, os cartões, os cheques, as notas, as moedas, as facturas que lá tinha, as notas de multibanco. Entro em pânico, fui assaltada. Não consigo fazer grande alarido, pois as minhas dores de cabeça não o permitem. Os olhos derramam lágrimas que rolam pela cara abaixo, mas também me fazem doer a cabeça. Lembro-me da última vez. Aconteceu-me o mesmo. Não aprendo. Aqui no mesmo local. Porque bebo tanto? Entro em casa e resolvo encarar o Emanuel e dizer-lhe que fomos assaltados. Ele responde-me que era bem feita, eu já devia saber disso. Bebo um café que já está na bancada da cozinha à minha espera. Dá-me a volta ao estômago. Tenho de ir para casa. Como saio daqui?

Não espero resposta. Saio de casa e ponho-me a andar, decidida a ir à polícia fazer queixa. Tenho umas moedinhas no bolso das calças, deve dar para o autocarro. Começo a andar, de olhos atentos, tenho de encontrar uma paragem de autocarro. Dói-me a cabeça. Vou numa estrada, de alcatrão, mas que está cheia de terra, das margens abandonadas. Mais ao longe, à minha esquerda, está um conjunto de prédios, altos amarelos, velhos, degradados. Às suas portas estão pessoas em pé, pessoas sentadas em banquinhos. Ninguém faz nada, até os cães dormem. Algumas olham-me. Começo a ficar incomodada. Mais à frente, vislumbro mais prédios. Já não estou no alentejo, definitivamente. Mas no primeiro prédio, à direita, há um cafezinho. Sinto-me aliviada, alguém a quem fazer perguntas.

Entro, logo olham todos para mim. O café tem mesas redondas com tampo a imitar madeira escura, rebordados de alumínio e quatro patas de metal. As cadeiras são idênticas, mas vê-se o aglomerado de que são feitas. O chão é de ladrilhos brancos, com manchas pretas e de outras cores, para disfarçar o sujo. Deve haver umas 10 mesas, cada uma tem 4 cadeiras à sua volta. Estão ocupadas 2 ou 3 mesas, vêm-se cartas de jogar, copos de 3, garrafas de vinho e cinzeiros cheios. O café está ocupado só com homens, ali mesmo ao lado da entrada está um com um bigode farfalhudo, barba por fazer, grandes sobrancelhas e olhos pernetantes. Tem uma camisola de alças branca, que deixa observar um a um os pelos que lhe cobrem ombros, costas, peito, sovacos. Cigarrinho no canto da boca, com a cinza do cigarro inteiro, quase a cair para cima das calças de fazenda castanhas escuras. Cartas na mão. Tem um bom jogo.

O empregado, ou dono do café, sai de trás do balcão, a secar as mãos a um pano, escurecido pelos anos de uso, mau uso. Abre-me um sorriso, com falta de vários dentes. Olá menina, posso ser-lhe útil? Voz bastante afável. Deve ser raro ver-se mulheres por ali. Pergunto pela polícia, onde ficava a esquadra da polícia. Logo o sorriso do homem se desvanesceu. Ouvem-se cadeiras a arrastar. Olho. Ninguém olha para mim, aliás escondem a cara para que eu não as veja. Rapidamente obtenho a minha resposta. A paragem do autocarro é ali. Com a mão, suja, mas seca, o homem empurra-me suavemente o cotovelo, em direcção à saída.

Fico contente de sair dali. Só quero ir para a paragem do autocarro. Vem aí um, corro. Obrigada, quanto é o bilhete?

19Fevereiro2008